Maria, no dia internacional para a eliminação da violência contra as mulheres


Maria. Vamos chamar-lhe assim para não ser ninguém e todas as mulheres ao mesmo tempo. Esta real, com quem me cruzei numa das minhas sessões de mediação leitora em contexto prisional. Na sequência de um exercício do género epistolar em que propunha a escrita de cartas a personagens imaginados ou fantásticos deparei-me com um texto que me fez pensar durante muito tempo. “Carta ao homem ideal”, lia-se numa caligrafia infantil mas bem desenhada na folha de papel que Maria me esticava para que eu desse a minha opinião. Lá, ela falava a um homem compreensível, terno e solidário a quem se propunha conhecer para sossego dos seus dias. Escutámos todos (eu e as outras reclusas) em redor da nossa mesa na biblioteca prisional aquela carta que nos levava num vento de fantasia. No final fez-se um silêncio que não soube interpretar. Dias mais tarde soube a razão da carta e dos olhares trocados no final da leitura: Maria viveu durante 10 anos um casamento de violência sofrida em silêncio e um dia na cozinha, de faca de cortar bifes na mão, o seu destino mudaria para sempre. Como se a faca fosse ensinada... Depois o que todos bem conhecemos: da pobreza à falta de um advogado ajustado, um passado já com cadastro e um juiz diligente na aplicação da lei. Na semana seguinte falámos de “O retrato de Dorian Gray" (Oscar Wilde) e a propósito dos homens que se escondem sobre uma aparência suave e elegante, a conversa soltou-se e por raros minutos tive o privilégio de aceder a um conjunto de pensamentos íntimos naquele universo de mulheres. E a violência estava lá toda, lentamente digerida com o coar dos dias.

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