Quando as mãos fazem, a cabeça ri.

"Meu rosto teu"
Não sei exatamente quando Arnaldo me começou a evitar no café. Costumávamos encontrar-nos sempre à noitinha no café do bairro: a mesma mesa, o Correio da Manhã aberto sobre o tampo, duas bicas e uma conversa que se prolongava até ao fecho das portas. Política, desporto, mulheres eram os nossos assuntos de eleição às vezes esgrimidos em tom polémico ou até zangado. Mas na noite seguinte, lá estava ele sentado, a seguir aos telejornais. Aliás, as novelas nunca foram do nosso agrado. Esse pequeno momento era o escape perfeito para um dia passado na repartição, trabalho até dizer chega e sempre com o Silveira, chefe da secção, a morder-me os ouvidos com aquela voz cavernosa de travo a bagaço, como quem diz um segredo: “tem aqui mais uns processozinhos para lhe alegrar a manhã…”.
Também não parava muito em casa… Já não tinha nada para dizer à minha mulher e a minha filha exibia um silêncio adolescente difícil de descortinar.
Lembro-me que as nossas conversas de café começaram a azedar. Dizem que até fui violento. Não me lembro. “O gajo é maluco” – diziam entre dentes. Mas a única vez que estive verdadeiramente louco foi quando me apaixonei por Elvira, a minha esposa. Aí estava mesmo apanhadinho de todo e fiz coisas que não conto a ninguém. Isso é que é ser maluco! De qualquer forma passei a tomar café sozinho, com o pessoal no balcão a olhar de soslaio. Parece que comecei a falar sozinho, preocupado. Mas tinha toda a razão: veja-se o estado do mundo…Não há de uma pessoa ficar ralada com o planeta? Pouco faltou para começar a infernizar a mulher sobre o que deveria comer lá em casa. Uma ida comigo ao supermercado era um desatino com aquela complicação que fazia com as compras, sempre a justificar a outros clientes que passavam o porquê da minha compra ou a censurar em voz alta a escolha de determinados produtos expostos nas prateleiras. Um dia o segurança da superfície comercial disse-me que não poderia entrar mais nas instalações. As coisas começaram a andar mal lá por casa. Cada vez que Elvira falava em médico eu explodia. Entretanto comecei a dormir mal, escutava vozes, escutava-as em todo o lado: Faz isto, não faças aquilo – um sofrimento. Mas isto, a senhora enfermeira já sabe…
Desde que vim aqui para o Centro e percebi o que se estava a passar comigo, as coisas mudaram… Mas o melhor mesmo foi quando a senhora nos levou ao Museu. Não sei porquê, mas entendo muito bem tudo aquilo que aqueles pintores nos querem dizer. É claro que nunca cortaria uma orelha, a senhora sabe isso. Mas deu-me uma vontade enorme de pintar, assim à solta. Entende? Quando pinto, parece que estou a falar amigavelmente comigo através das tintas. Sabe que não me lembro nada daquilo que penso enquanto estou a pintar ou desenhar? Apenas fica o desenho pronto e já está! Às vezes viro-me para as vozes e digo: está calada e deixa-me pintar! Agora descobri que pintar a escutar música tocando baixinho faz com que surjam novas imagens…
Quer saber uma? No outro dia entrei no café e chamei pelo Arnaldo que estava lá colado ao balcão - Anda cá, senta-te e espreita isto que aqui tenho! - E mostrei-lhe as minhas aguarelas… Ele sentou-se desconfiado, pegou nos papéis, observou atentamente, coçou a cabeça e perguntou - Foste mesmo tu que fizeste isto? - Anui, com a cabeça. - É pá…És mesmo um artista! E depois pedimos dois cafés e começámos a falar das últimas transferências da pré-época do campeonato de futebol.
Vou-lhe contar uma coisa: esta manhã, depois do pequeno-almoço a minha filha abraçou-me… Olhe que até me vieram as lágrimas aos olhos…
Sabe uma coisa? Quando as mãos fazem, a cabeça ri…

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